Por: Haidar Abu Talib
A história oficial brasileira, como outras histórias oficiais de outros povos e nações, sofreu algumas interferências modificadoras, produzidas pela conveniência dos ocupantes do poder material e seus aliados. A busca da verdade pela verdade, sem acomodamentos, é dever de todo historiador. Como exemplo disto temos:
Na introdução de Mario da Gama Kury, em História de Herôdotos, – pag. 8/9 Editora Universidade de Brasília, 1985 – é dito que: “Herôdotos é chamado “pai da história” porque antes dele houve apenas logógrafos (literalmente ” escritores em prosa”, em contraste com os “escritores em verso”; … O nome de logógrafos refletia apenas a qualidade de prosador, enquanto que o de historiador (historikôs) tem um significado mais definido, pois história quer dizer originariamente “busca, investigação, pesquisa”; então o historiador, do ponto de vista etimológico, é uma pessoa que se informa por si mesma da verdade, que viaja, que interroga, em vez de limitar-se a transcrever dados à sua disposição e repetir genealogias, cronologias e lendas, ou compilar registros relativos à fundação de cidades, tudo com o intuito exclusivo de satisfazer a curiosidade ingênua de um público ainda pouco exigente, sem estabelecer a menor distinção entre acontecimentos reais ou relatos imaginários, entre fatos ou peripécias fantásticas.”
De igual modo, o Islam, dentre outros pontos que incorporam o seu significado, é o contrário de ignorância, de mentira e de ocultamento, e todo aquele que oculta, omite, falseia ou a modifica intencionalmente é designado por “kafir”. A busca da verdade, é obrigação de cada muçulmano.
Atualmente, nestes tempos de globalização, em que muito se fala de multiculturalismo, é necessário buscar a realidade dos fatos e da trajetória humana. Em especial, nas últimas décadas do século XX, nos anos 70, 80 e 90, um movimento de revisionismo histórico começou a tomar vulto, propondo o reexame de fatos, até então adormecidos, acomodados ou até mal explicados. Dentre eles, vários pontos relacionados a formação dos povos e nações, e porque não, a formação do Povo e da Nação Brasileira.
O Brasil, além da manutenção da estabilidade monetária, necessita de igual modo, de uma estabilidade social, e ao nosso ver, isto só ocorrerá, dentre outras coisas, quando houver um carinhoso exame para observação da história relatada, comprovação do que consta dessa história, questionamento dos pontos controversos e, mais do que tudo, amor fraterno para com todos os nossos concidadãos.
Nossos dramas são fruto de etnocentrismos, o esteticismos, eugenismo, multiculturalismo, etnocentrismo, xenofobia. O processo dito civilizatório, atrelado ao fardo civilizatório do homem branco, na contramão da civilidade que é sinônimo de urbanidade, pré-condição para a fraternidade.
A tragédia social de nossa época, exige de todos nós grandes quantidades de humildade, lucidez e equilíbrio e, porque não dizer, amor por nossos semelhantes. Sem paixões e rancores, para o indispensável alcance das soluções adequadas aos problemas que estamos vivenciando. O exemplo disto é que, no Fórum de Debates Interculturalidades na América Latina – Religião e Multiculturalismo – Povos e Culturas das Américas, promovido pelo Núcleo de Estudos das Américas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, realizado de 6 a 10 de novembro de 2006, a questão central tratada foi: “O pluriculturalismo envolve, além das questões complexas sobre interculturalidade, problemas cruciais que esbarram em confrontos de imaginários e cosmovisões. As distorções sociais se acentuam gerando desigualdades, exclusões, violências e corrupções, entre tantos aspectos que desafiam a sobrevivência dos povos e culturas nesses espaços, fragmentados pelo etnocentrismo e pela alteridade.”. E como… “pretende se tornar um espaço de diálogo e reflexão sobre a complexidade das questões interculturais” …” diante da nova e ameaçadora ordem social e cultural que se instalou sob as Américas.”.
Necessitamos ponderar que a intenção e a prática que podem proporcionar a harmonia entre todos nós tem por alicerce um princípio claro: Não existe nenhum ser humano que seja melhor que o outro pela mera alegação de superioridade quanto à raça, gênero, etnicidade, condição social, linhagem ou estirpe familiar, capacidade intelectual ou quaisquer argumentos de autopromoção ou de antropolatria.
Somos parte da criação como um todo, sujeitos as normas que abrangem tudo o que somos, tudo o que em nós está contido e tudo o que nós cerca. O melhor de todos nós, será aquele que melhor se esmerar na intenção, na sua capacitação, na prática de suas ações, reações e respectivos seus resultados.
Muitos contaminados pela própria arrogância e ambição, ou desviados pelo mal, arvoram-se em superiores, acima de tudo e de todos, porém, nenhum de nós conhece com precisão absoluta o que efetivamente há dentro de nosso próprio eu, quanto mais o que há dentro de nossos semelhantes que conceituamos como diferentes.
Por vezes, imaginamos como justificativa para nossas atitudes, um ringue onde acontece a luta entre o Bem e o mal. Permitimo-nos ser ora espectadores, imaginando que Deus luta contra o mal e que nada temos a fazer. Na realidade o mal nada pode contra Deus. O mal visa nos destruir. Contra Deus o mal nada pode.
Mesmo que algumas pessoas acreditem-se capacitadas a legislar de modo espúrio, classificando seus semelhantes que discordam de seus interesses como “entes do mal”, a Justiça os alcançará e os reconduzirá a sua real posição.
Sobre tudo isto, o conhecimento proporcionado pela Revelação Corânica nos apresenta o seguinte:
A perspectiva islâmica nos textos do Alcorão Sagrado:
O profeta Muhammad ﷺ (Que a Paz e as Bênçãos de Allah estejam sobre ele) ensinou o seguinte: “A boa palavra equivale uma caridade”.
No Alcorão existem 527 versículos que falam sobre o diálogo.
Na América Latina, o Brasil, país com maior dimensão geográfica e populacional, é formado por uma grande diversidade de povos, etnias e respectivas cosmovisões.
A simplicitude alegada de que somos uma nação, formada por povos indígenas, portugueses e africanos, não corresponde à verdadeira amplitude da composição do povo brasileiro. Ainda há muito a ser pesquisado, resgatado, conhecido e acrescido a nossa história nacional. Populações indígenas, com sua pujança, plenitude e variedade cultural; a realidade dos habitantes não nativos à época do descobrimento; dos emigrantes vindos da Península Ibérica; os africanos trazidos para o Brasil; os demais agrupamentos étnicos que aqui chegaram ao longo de todo esse período de tempo até nossos dias.
Os interesses relacionados à manutenção do poder pelos colonizadores, fizeram com as informações fossem inicialmente submetidas as suas análises e censura, e essa prática continuou sendo praxe pelos seus sucessores no comando sociedade brasileira. Essa ocultação, sonegação ou encobrimento da verdade, equivale ao erro da intenção de mentir, falsificar e enganar.
Ainda não são totalmente conhecidos todos os elementos formadores da atual argamassa da nação brasileira, mas o acesso ao conhecimento nem sempre é fácil e o conhecimento existente nem sempre é exato e acessível. A partir da última década do século XX, surgiu um clamor revisionista sobre vários pontos da história oficialmente conhecida. Por exemplo: Com a chegada do colonizador português em abril de 1500, as populações aqui encontradas constituídas por povos organizados em nações e tribos indígenas, foram submetidas a tudo aquilo que com conceitualmente faz parte do ato de colonizar. O Brasil, teria sido descoberto por Pedro Álvares Cabral, apesar de estudiosos como Carolina de Michaellis insistirem e na teoria do “achamento”, isto é, só se procura o que se sabe existir. Aliás, em 1498, 2 anos antes de Pedro Álvares Cabral, o navegador Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de Situ Orbis informava a Dom Manoel I, O Venturoso, sua chegada ao Brasil, isto é, 2 anos antes de Cabral. Coincidentemente ou não, Duarte Pacheco Pereira testemunhou a assinatura do Tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de Junho de 1494, 4 anos antes de chegar ao Brasil. É verdadeiramente espantoso o fato da acuidade visual que proporcionou, em termos cartográficos, a divisão territorial da América do Sul, entre Espanha e Portugal, de algo que para o conhecimento da época, não se sabia existir. Teria sido mágica ?
Outras questões nos trazem uma infinidade de aspectos quanto ao que poderíamos de chamar bases sociais das populações nativas aqui existentes. Sua diversidade cultural, diferentes níveis de cultura e sabedoria, origens e a quanto tempo essas populações existiam organizadas como então estavam organizadas, coisas que provavelmente nem passaram pela cabeça dos colonizadores. Passado o período entre 1500 e 1534 e a partir daí até 1549, com a primeira e a segunda formação das Capitanias Hereditárias, fracassada a tentativa de promover a economia colonial com a escravização dos nativos brasileiros submetidos direta ou indiretamente a um genocídio, e a sua substituição por africanos ao Brasil, para servir de força motriz para a extração de riquezas por aproximados 400 anos de flagelo, injustiça e crueldade.
Quanto foi ocultado ou deixou de ser observado, a pretexto de superioridade cultural, racial, religiosa ou mero interesse econômico? A chegada do “Santo Ofício” em 1592, as invasões holandesas e francesas, tudo isto interligado de forma direta ou indireta aos procedimentos praticados na colônia e no império, para a manutenção do poder de uma elite, até a República do Brasil. Em especial, essa invisibilidade, fosse por desconhecimento, fosse por ocultação da realidade dos fatos e das circunstâncias, e até das qualidades do outro, produziram sobre o diferente, desafortunado ou somente discriminado, uma série de outros dramas, por vezes insolúveis do berço a sepultura.
Ainda ecoa sobre o Brasil, aquilo que o Professor Darcy Ribeiro indagou na apresentação da sua última obra “O Povo Brasileiro”: – Porque é que o Brasil ainda não deu certo ? Com a aproximação do último século da escravidão legal, a partir da proibição do tráfico de escravos pelo império inglês, e o mercado paralelo que valorizava mais ainda a “mercadoria”, mesmo já tendo sido proclamada a Independência por Dom Pedro I em 1822, o Brasil Império, ainda estava atrelado a Portugal, que por sua vez dependeu da Inglaterra, que foi alçada a condição de agente comercial exclusivo de todos os produtos exportados pelo Brasil.
Em 25 janeiro de 1835, depois de muitas outras revoltas na Província da Bahia, em meio a um conjunto de crises econômicas, algumas delas promovidas pela falsificação de moedas da época, ocorreu a Revolta dos Malês, e em 14 de maio de 1835, 5 muçulmanos, Neste ano de 2007, completar-se-ão 172 anos da execução de JOAQUIM, nagô, escravo; GONÇALO, nagô, escravo; PEDRO, háussa, escravo; JORGE DA CRUZ BARBOSA, háussa, liberto e JOSÉ FRANCISCO GONÇALVES, háussa, liberto, todos muçulmanos e mártires, fuzilados em 14 de maio de 1835, em Salvador. Sem qualquer referência nos livros didáticos escolares, constando apenas dos poucos livros que tratam de pesquisa histórica especializada, a história factual, espera a vez e a hora para ser transladada para a história oficial.
A quase total invisibilidade da presença muçulmana no Brasil, talvez fruto do desprezo ou de uma censura vigilante, sob aqueles que vieram da Península Ibérica e da África, não pode ser justificada pela falta de conhecimento dos poderosos de então. Quanto aos que vieram da África, somente no final do século XIX, por nomes como os etnólogos Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, foram objeto de explicação “científico-etnológica”.
Quem sabe, a quantas andou a teoria de César Lombroso e a teoria chamada como “perfil do lombrosiano” que apresentava a periculosidade potencial da pessoa patologicamente feia. Viajantes como, por exemplo, Richard F. Burton, no século XIX, ) que após longa viagem pelo Brasil foi servir como Vice-Consul da Inglaterra na Nigéria), observaram a pequena África na região da Gambôa, no Rio de Janeiro, à época do Cais da Imperatriz, da Pedra do Sal, do Mercado de Escravos e da vala comum, chamada de Cemitério dos Pretos Novos, criada em 1722, no Largo de Santa Rita, próximo ao chafariz situado na frente da igreja do mesmo nome, (atualmente av. Mal. Floriano com Largo de Santa Rita, transferido pelo Marques de Lavradio em 1779 para a rua da Gambôa, nas imediações do então mercado de escravos do Valongo. Hoje na atual rua Pedro Ernesto, onde existe uma placa que informa ser ali o “Sítio Arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos”, parte de uma área estimada em “50 braças em quadra” (sistema métrico daquela época).
A Gambôa, era reconhecida como ponto de concentração de africanos escravos ou libertos, de maioria muçulmana, trabalhadores da estiva e demais serviços relacionados ao porto de então. Na rua Barão de São Félix, segundo relato João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, cronista do Rio Antigo, em “Religiões do Rio”, funcionava uma antiga sociedade beneficente, que existia desde o século XVIII, onde reuniam-se africanos e árabes para as orações islâmicas.
Muitos dos aproximados mais de 6.000 corpos que ali foram jogados, por observações dos trabalhos de salvamento arqueológico realizados por ocasião do encontro de parte dos ossos no ano de 1996, eram de muçulmanos, além de outros africanos, que chegados da travessia do oceano Atlântico, não se recuperavam no período de quarentena para engorda e embelezamento, para apagar parte dos vestígios dos maus tratos e péssimas condições de alimentação, sem higiene e por vezes até sem água para beber.
Na segunda etapa da expansão europeia, surgiu o “fardo civilizatório do homem branco”, que pretendendo “civilizar”, continuou o trabalho etnocêntrico e xenófobo para o submetimento e saque de suas vítimas. Igual a vários outros pretendidos até os dias de hoje, espalhando a “democracia global”. A utilização das informações e da transformação de mentiras em verdades, até que o próprio mentiroso acredite nela, ou da ocultação da verdade de acordo com o “interesse legítimo” coincidem com o que Maquiavel escreveu no livro O Príncipe.
O fim da escravidão legal se deu em 13 de maio de 1888, 53 anos depois do fuzilamento dos muçulmanos na Bahia, e de tantos outros mortos anonimamente através dos séculos no Brasil; chegou a República, e com ela, logo a seguir, a Guerra de Canudos, onde foram dizimados cidadãos brasileiros que resistiram a corrupção e ao abuso de poder, acusados de serem “monarquistas”, Porém, na prática de antes e de agora, as tensões e os dramas ainda sobrevivem.
A “queima dos documentos” por Ruy Barbosa, a política de branqueamento da sociedade brasileira, não foram suficientes para dotar os ex-escravos já nascidos no Brasil ou vindos da África, das condições necessárias a uma Justiça Social e a restituir-lhes a dignidade humana. Depois surgiram teorias como a da Democracia Racial descrita por Gilberto Freyre. De igual e tão dramático modo, seguem as populações nativas, dito indígenas, buscando compreender o por que não são compreendidos e por que não lhes é dado o direito a existir sem estarem submetidos a outros padrões culturais, que nada tem a haver com avanço tecnológico, social ou tudo o mais que hoje compõe o chamado IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.
Agravaram-se as tensões sociais que até hoje desencadeiam tragédias e dramas pessoais e coletivos, em meio a este mundo globalizado, dominado hegemonicamente por um país, conhecido pela sua economia e seu poder bélico, do chamado Primeiro Mundo, enquanto nós, de acordo com o esteticismo dominador, ainda somos do Terceiro Mundo, não alcançando sequer o “Segundo”, que ninguém ainda disse onde fica.
Ao meu ver, com o intuito de empreender uma jornada de esforços para a compreensão dessas tensões sociais, partir de 2002, com a criação de organismos governamentais à nível federal, tais como o CNPIR – Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial órgão da SEPPIR – Secretaria Especial para Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ambas com status de ministério, iniciou-se um trabalho que busca o diálogo para mútuo conhecimento e alcance de vários problemas sociais havidos pelo desconhecimento ou pelo desrespeito ao próximo.
Em 2005, várias conferências a nível municipal e estadual por todo o Brasil aconteceram, preparatórias da conferência nacional havida no final de julho e início de agosto de 2005, cujas recomendações visam atender a inúmeras questões raciais, étnicas e religiosas da realidade brasileira. Na cidade do Rio de Janeiro, coincidentemente, a conferência foi iniciada em 14 de maio de 2005, 170 anos depois do fuzilamento dos muçulmanos. InshaALLAH, doravante, tenhamos o alcance das soluções que todos nós tanto necessitamos.