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“Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso”

No até então perdido “Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso” , o imã Al-Baghdádi narra suas experiências no Brasil e se contrapõe ao eurocentrismo. O relato, inédito, narra as experiências de um líder muçulmano que esteve no Brasil do século 19.

Entre viagens ao Oriente Médio e à Europa e discussões com pesquisadores, o professor da USP Paulo Daniel Farah conseguiu devolver à luz um documento raro sobre a história do Brasil: o relato sobre os costumes locais feito por um imã que, vindo num navio do Império Otomano, decidiu aqui permanecer.

Em 1865, após um desvio de rota imposto por tempestades, aportou no Rio de Janeiro o imã Abdurrahman bin Abdullah al-Baghdádi ad-Dimachqi. Quando ficou sabendo que o país continha milhares de muçulmanos –escravos ou libertos–, o religioso foi investigar a situação dessas populações de origem africana. Os reiterados pedidos de instrução no islã o teriam convencido a ficar.

Em “Deleite do Estrangeiro em Tudo o que É Espantoso e Maravilhoso”, (Biblioteca América do Sul-Países Árabes, 476 págs., ainda sem distribuição comercial)*, Al-Baghdádi descreve minuciosamente práticas religiosas, sociais e culturais das regiões por que passou.

Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, Farah conta como chegou ao manuscrito, depois de três anos de busca. Para o responsável pela edição trilíngüe do texto (em árabe, português e espanhol), esse documento, além de representar o único olhar muçulmano para o Brasil do século 19 de que se tem registro, mostra como a cultura árabe podia ser mais esclarecida do que a européia ao tratar de povos estrangeiros.

Redigido em caracteres árabes, o manuscrito contém termos em árabe, turco otomano, persa, grego, francês, português e tupi e constitui o principal documento acerca da situação dos muçulmanos no Brasil no século XIX, especialmente após o levante dos malês (1835). Trata- se também do único registro até agora conhecido de um olhar árabe – e muçulmano – sobre a paisagem tropical e a sociedade multiétnica e multiconfessional que se formava à época no Brasil.

Erudito muçulmano que estudara árabe, persa, literatura, jurisprudência e teologia, entre outras disciplinas, Al-Baghdádi veio ao Brasil do Oitocentos em uma corveta, enviada em 1865 (1282 da hégira) pelo sultão Abdulaziz (1277-1293 da hégira ou 1861-1876 d.C.) de Istambul a Basra, que teve sua rota desviada por uma série de tempestades e veio a aportar no Rio de Janeiro, onde o imã árabe decidiu permanecer após identificar na cidade a presença de muçulmanos.

Convidado pela comunidade muçulmana da Bahia e de Pernambuco a prolongar a missão de cunho didático que atribuíra a si e o fizera abandonar o vapor para instalar-se na capital do Império do Brasil, ao passo que seu comandante prosseguiu rumo a Basra, Al-Baghdádi continuou seu périplo e relato, no qual descreve, de forma minuciosa e especializada, as práticas e as crenças da comunidade muçulmana.

No manuscrito, o imã discorre ainda sobre a fauna, a flora, as tradições e as populações brasileiras sob o prisma de um erudito. A obra reproduz todo o manuscrito original e traz tradução anotada e estudo analítico. Inteiramente trilíngue, em árabe, português e espanhol, o livro apresenta textos de análise e comentário e possui um caderno de imagens do século XIX.

Este livro é uma importante fonte de informação histórica, geográfica, antropológica, política, religiosa e literária sobre o Brasil, a África, os árabes e os otomanos.

Entrevista do autor Paulo Daniel Farah a Folha:

FOLHA – Como como conseguiu o manuscrito do imã Al-Baghdádi?

PAULO DANIEL FARAH – Trabalho com manuscritos há anos. Coleciono obras raras, especialmente aquelas de fora do espaço da eurofonia -em árabe, turco otomano, persa, em línguas africanas grafadas em árabe. Faz parte do trabalho de pesquisador procurar fontes novas.

No caso desse manuscrito em particular, foi uma longa trajetória. Durante uma viagem de pesquisa à Turquia, vi uma referência ao autor e sua passagem por “um país sul-americano”. Já interessado por ele, tive depois a grata surpresa de que fosse o Brasil. Do século 19, é o único registro conhecido de um olhar árabe muçulmano sobre o Brasil.

FOLHA – Quanto tempo levou para obter o documento?

FARAH – Cerca de três anos. Pesquisei bastante nas bibliotecas da Turquia, da Síria e do Iraque, que eram a região de vivência de Al-Baghdádi. Ele nasceu em Bagdá, mas cresceu em Damasco, no contexto do Império Otomano, que era centrado em Istambul. Passei a conversar com colegas acadêmicos. Uma dificuldade foi a de que a maioria dos pesquisadores turcos não lê árabe –o idioma turco deixou de ser escrito em árabe, a escrita turca foi latinizada no início do século 20. Encontrei uma referência depois de muito tempo, com um colega da Turquia. Indicava uma biblioteca de Istambul. Finalmente, soube que a Biblioteca de Berlim tinha adquirido o manuscrito.

FOLHA – Não conhece referência na historiografia brasileira ao manuscrito ou à permanência desse religioso no país?

FARAH – Não. É uma fonte nova, esse manuscrito ficou perdido. Acredita-se que ele deve abrir todo um novo campo de pesquisa. Colegas de pós-graduação em história e de outros departamentos na Unicamp e na USP, por exemplo, já manifestaram interesse em incorporar essa fonte a cursos e debates. As universidades de Argel e Orã (Argélia), Rabat e Fez (Marrocos) já manifestaram interesse em usar o livro. Haverá ainda uma exposição itinerante, passando por Argélia, Marrocos, Líbano, Egito, Chile e Argentina.

O texto não é útil só para o estudo dos muçulmanos. Os estudos da escravidão e da religião em geral, por exemplo, também se beneficiam. Uma coisa interessante do manuscrito é ver como a comunidade muçulmana era organizada, era una. A comunidade da Bahia ficou sabendo da presença de Al-Baghdádi e enviou um pedido para que ele continuasse a ensinar religião, depois a comunidade de Pernambuco faz o mesmo.

FOLHA – Ao tratar do índio e do negro, ele era mais esclarecido do que os luso-brasileiros do tempo?

FARAH – Sem dúvida alguma, principalmente no caso dos africanos muçulmanos escravizados. São pessoas que lideraram vários movimentos de libertação de escravos no país. O olhar que ele tem é aquele sobre uma comunidade muçulmana num país distante, de maioria cristã, mas sem conferir à etnia um papel central.

É um grande diferencial, pois ele trata a comunidade como muçulmana – as particularidades estão no fato de ser uma comunidade africana, no contexto de repressão pós-Revolta dos Malês [1835].

Ele retrata a repressão a que foram submetidos esses muçulmanos, a coibição da prática religiosa, com um olhar muito distinto do europeu. Ele valoriza os elementos africano e indígena na formação da identidade brasileira, trata a multiplicidade sem gradações.

FOLHA – Como interpreta a parcialidade do narrador?

FARAH – É um narrador como outro qualquer. Como imã, ele é representante de uma visão ortodoxa, para dizer o mínimo. Sua vertente da religião não é africana, por isso ele condena parte da comunidade por consumir bebida alcoólica, por exemplo, e condena outras práticas próprias da prática muçulmana africana, como os amuletos, os quadrados mágicos de proteção. Ele as descreve condenando, mas com muito detalhamento.

FOLHA – Nesse sentido, seu etnocentrismo é comparável ao dos naturalistas europeus, que condenam as práticas “selvagens” com que se deparam?

FARAH – Não, é muito diferente da crítica européia. Sua comparação não é baseada em uma superioridade. Ele reconhece uma situação em que são aceitas práticas diferentes e vê como missão defender a vertente que ele entende como melhor. Sua reação é distinta daqueles que se viam como representantes de uma categoria superior.

FOLHA – Esse bagdali pode ser descrito como “pensador diplomático”?

FARAH – Ele segue o “hadith” [um dos dizeres] de Muhammad que diz: “O islam começou como um estrangeiro e irá voltar como começou, um estrangeiro. Abençoados sejam os estrangeiros”.

Na teoria, as fontes islâmicas pregam uma igualdade entre as diferentes etnias: “Nenhum árabe pode pretender ser superior ao estrangeiro, a não ser pela piedade” Al-Baghdádi estava totalmente dentro dessa linha. Ele procurou fazer uma mediação entre o islã que ele defendia e a realidade cultural africana e brasileira.

Um exemplo disso é como ele transita pelas escolas de jurisprudência islâmicas. Ele cita o autor egícpio As-Sa’rani, que procura um equilíbrio entre as diferentes interpretações das vertentes muçulmanas. Ele não opta por autores que tenham uma visão excludente.

Outra grande novidade desse documento é tratar da relação entre o Império Otomano e o império brasileiro.

FOLHA – Saad Eskander, diretor da Biblioteca Nacional do Iraque, disse ao Mais! (na edição de 19/8) que não lhe ocorria texto iraquiano que fosse uma boa influência para acabar com a guerra  preferiu indicar o indiano Gandhi. Os iraquianos não são herdeiros dessa tradição esclarecida que deu origem a uma personagem como Al-Baghdádi?

FARAH – São herdeiros, sim, de uma tradição culta  a sociedade iraquiana é conhecida no mundo árabe pelo apreço pela leitura. E quando há cultura, normalmente há propensão à tolerância.

Em Bagdá, é conhecida a rua Abu Nuwwas, cheia de livrarias e sebos, que sempre foi lugar de diálogo e reflexão crítica. Apesar dos contextos históricos que levaram a dificuldades como ditadura e ocupação, eles integram uma sociedade que tem uma tradição de tolerância muito forte, de respeito ao estrangeiro. Al-Baghdádi é um representante dessa tradição.

FOLHA – E como aparece a relação entre Brasil e Império Otomano?

FARAH – O relato é uma contribuição importante para análises comparativas das conexões entre esses impérios. O navio veio parar no Brasil por causa de uma seqüência de tempestades, foi o primeiro navio otomano a atracar no Rio de Janeiro. O comandante teve de tomar dinheiro emprestado no Rio, teve mediação do consulado inglês  é uma prática de diplomacia.

FOLHA – Por que a edição trilíngüe?

FARAH – A intenção é estabelecer uma ponte entre os estudos árabes e os estudos sul-americanos. Todos os textos aparecem em árabe, espanhol e português _além das expressões, no original, em turco otomano, persa, francês e também em português e tupi. No caso do árabe, além do fac-símile, há a versão fixada, com notas explicativas.


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    O livro está disponível para aquisição através do site http://www.bibliaspa.com.br/obra.jsp?cod=1